Da CONJUR
O Ministério Público quer pressa no julgamento do Recurso Extraordinário 591.054, cuja Repercussão Geral foi
declarada pelo Supremo Tribunal Federal em outubro de 2008. De relatoria do
ministro Marco Aurélio, o caso trata da possibilidade de considerar processos
criminais em andamento como “maus antecedentes” para o cálculo de pena base. O
mérito do recurso ainda não foi discutido.
A discussão leva em conta o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal,
segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”. É o princípio da não culpabilidade.
Já o artigo 59 do Código Penal diz que “o juiz, atendendo à culpabilidade,
aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às
circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima,
estabelecerá [as penas e a dosimetria], conforme seja necessário e
suficiente para reprovação e prevenção do crime”. O que o Supremo vai discutir é
o que pode ser considerado como “antecedentes”.
O debate não ficou de fora do julgamento da Ação Penal 470, o processo do
mensalão. Ficou mais evidente com o vazamento de parte do voto do relator, ministro Joaquim
Barbosa. No item 4, que tratou do chamado “núcleo financeiro”, Barbosa
considerou a existência de processos criminais em andamento como maus
antecedente para o cálculo da pena.
No caso de Marcos Valério, por exemplo, Barbosa diz que “se verificam não
uma, mas inúmeras ações penais contra o réu, algumas delas com sentença
condenatória”. E conclui que o empresário “ostenta maus antecedentes”. Essas
sentenças, no entanto, foram objeto de recursos ainda não julgados.
José Roberto Salgado, ex-dirigente do Banco Rural e também réu no mensalão, é
outro exemplo, e dos mais evidentes, da sensibilidade da questão. Ele tem 23
ações penais em curso e “ostenta maus antecedentes”, no entendimento de Joaquim
Barbosa. Não tem condenações. Barbosa faz a mesma conta com todos os réus do
item 4 que são também réus em outras ações.
Todos os lados
No Supremo há vozes em todos os sentidos
da discussão. O ministro Joaquim Barbosa, no julgamento do mensalão, manteve-se
coerente com o que sempre defendeu. No Recurso Extraordinário 503.221, de 2008,
ele diz que a consideração de processos e inquéritos policiais em andamento como
maus antecedentes “deve se dar à luz do caso concreto, após o devido exame dos
procedimentos penais constantes da folha de antecedentes do acusado”.
Já o ministro Gilmar Mendes é taxativo em discordar. Quando relatou o
julgamento do HC 112.449, em março deste ano, disse que a “mera existência” de
inquéritos ou ações penais em andamento não pode ser considerada. “É que o
princípio da presunção da inocência tem a função dogmático-constitucional de
impedir que o indivíduo sofra prejuízo em razão da existência de uma
investigação ou de um processo criminal ainda não transitado em julgado”,
anotou.
O ministro Ricardo Lewandowski discorda de Gilmar, mas nem por isso concorda
com Joaquim. “Inquéritos policiais e ações penais em andamento configuram, desde
que devidamente fundamentadas, maus antecedentes para efeito da fixação da
pena-base, sem que, com isto, reste ofendido o princípio da presunção de
não-culpabilidade”, decidiu no Agravo de Instrumento 604.401, julgado em
2007.
Dias Toffoli é da corrente dos que são contra considerar ações em trâmite. No
julgamento do HC 106.157 concluiu que fazê-lo seria uma “arbitrária exacerbação
da pena”. Para ele, não se podem levar em conta nem mesmo condenações alvo de
recurso.
O ministro Marco Aurélio, relator do RE que está sob Repercussão Geral, ao
lado do ministro Celso de Mello, é o mais citado autor de precedentes pela não
consideração de ações em trâmite. Celso decidiu assim nos HCs 79.966, 79.748 e
84.687, por exemplo. Marco Aurélio, nos HCs 79.966 (acompanhou o decano), 83.493
e 81.759, em que houve empate entre as duas correntes.
Ponto pacifico
No Superior Tribunal de Justiça, os
ministros já não discutem mais sobre isso pelo menos desde 2010. Naquele ano, a
3ª Seção, que trata de matéria penal, editou a Súmula
444, que diz: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais
em curso para agravar a pena-base”.
O precedente mais antigo citado pela súmula é um Habeas Corpus de 2007. A
relatora, ministra Jane Silva, desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais convocada ao STJ, afirmou que, “após a Constituição de 1988, antecedentes devem
resultar de decisão condenatória transitada em julgado, sendo que processos em
andamento, ou inquéritos, não podem servir para agravar a pena do réu, nem mesmo
para se considerar que ele possui má conduta social, ou personalidade deformada,
porquanto poderá, no final dos processos, ser absolvido”. “A sentença só produz
qualquer efeito”, continuou a ministra, “após o seu trânsito em julgado”.
Também desembargador convocado, o ministro Adilson Macabu, do TJ do Rio de
Janeiro, reafirmou, no HC 180.467, de 2010, o entendimento de Jane Silva. E isso
já depois de o Supremo ter declarado a Repercussão Geral no tema. “Enquanto o
mérito do referido Recurso Extraordinário não for julgado pela Excelsa Corte,
persiste o entendimento cristalizado deste colegiado.” Ou seja, que só as
condenações transitadas em julgado podem ser consideradas como “maus
antecedentes”. Macabu voltou ao TJ do Rio esta semana.
Em agosto deste ano, o ministro Gilson Dipp, no Recurso Especial 1.199.497,
reafirmou a convicção da desembargadora, hoje de volta ao TJ mineiro. “O
entendimento pacífico neste Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a
existência de inquéritos ou ações penais em andamento não maculam o réu como
portador de maus antecedentes, de má conduta social e nem de personalidade
voltada para a prática de delitos.”
Questão de princípios
Entre advogados, é consenso que a
razão está com o STJ. O professor de Direito Criminal e decano da USP
Miguel Reale Junior explicou à revista
Consultor Jurídico que não se pode levar em consideração, para
o cálculo da pena, um processo em que o réu pode ser absolvido. “Não existe
nenhum elemento que justifique superar a presunção de inocência.”
O criminalista Carlos Mendes é de opinião mais militante.
Ele entende que, além do princípio da não culpabilidade, o posicionamento do
ministro Joaquim Barbosa também ofende o princípio da dignidade humana. “O
aumento implica em punição pelo que se é e não pelo que se fez”, afirma o
advogado.
Em parecer enviado ao Supremo Tribunal Federal para o caso que está em
Repercussão Geral, o Ministério Público Federal se diz a favor da majoração com
base em ações em trâmite. O órgão afirma que, por conta do princípio da
individualização da pena pela conduta, não se poderia adequar a punição ao réu
de outra forma. Considerar processos sem trânsito em julgado, para o MP, é
necessário, portanto.
Mendes também refuta essa argumentação. Para ele, faria sentido argumentar
dessa forma se os antecedentes fossem a única forma de se calcular a pena. Mas o
artigo 59 do Código Penal, diz o advogado, elenca oito circunstâncias judiciais
“de ordem objetiva e subjetiva”.
Para o criminalista Fábio Tofic, do Tofic e Fingerman
Advogados, a majoração com base em processos em andamento é “indevida”. “O
acréscimo de pena seria uma punição antecipada por um fato ainda não julgado, e,
o que é pior, cuja apuração compete, a rigor, a outro juízo. Um absurdo, em
suma.”
O advogado Hugo Leonardo acredita que o entendimento do
ministro Joaquim Barbosa "relativiza" o princípio constitucional da não
culpabilidade. Uma decisão do Supremo com esse teor, afirma, é "um convite ao
desprezo à Carta Magna".
Leonardo resume sua fala com um questionamento: "Qual será a legitimidade de
uma pena exasperada pela existência de processos não transitados em julgado no
caso de absolvição do acusado nesses mesmos processos utilizados como móvel para
o aumento?"
Pedro
Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
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