Da CONJUR
Há
excelentes histórias contadas pelo jornalista Fernando Morais em seu Chatô,
o Rei do Brasil, livro de que tenho algumas ressalvas, mas isso não vem ao
caso aqui. Uma das boas histórias narradas por Morais serve de verdadeira lição
no atual momento. Trata-se do episódio em que Assis Chateaubriand, ainda um
desconhecido jornalista, sai à procura de uma polêmica que o projete
nacionalmente. E o inimigo que “iria receber a estocada de seu florete” aparece
na figura do afiadíssimo sergipano Sílvio Romero, um dos grandes intelectuais
que esse país conheceu.
“A morte da polidez” foi o título da série de cinco artigos, logo
transformados em livro, em que Chatô se mete na briga entre Sílvio Romero e o
crítico José Veríssimo, defendendo o segundo. Esperava que o famoso Romero
revidasse, colocando Chatô na evidência nacional pretendida. Raposa esperta,
Romero não revidou o ataque, abortando a pretensão do futuro criador dos
poderosos Diários e Emissoras Associados, primeiro império de mídia do
país.
Essa história veio à mente quando li o editorial do jornal O Globo,
“Roberto Civita não é Rupert Murdoch”, resposta à capa da revista
CartaCapital, de 9 de maio. Deu margem à capa seguinte desta semanal de
Mino Carta: “Os chapa-branca da casa-grande”. E com isso Mino conseguiu a proeza
que Chatô buscou sem sucesso. E novamente replicou a capa da edição anterior,
com seu ex-patrão e desafeto Roberto Civita encimando a tarja com o editorial de
O Globo.
Mas isso é apenas um ponto nessa complicada trama de muitos fios e nós.
Estamos num ano bissexto e de alta octanagem ideológica. E o que se esgrime na
mídia não é uma discussão de interesse público, como a ferida em chaga viva da
corrupção ou do uso do público em interesse privado, mas a defesa de posições
entranhadamente ideológicas. Não está em discussão o “baile dos guardanapos”,
protagonizado pela entourage do governador carioca Sérgio Cabral, patrocinado
pelo até há pouco dono da Delta Construções, Fernando Cavendish. O governador já
havia dito, tempos atrás, que precisava criar um código de ética. Parece que ele
não aprendeu ainda a divisória entre público e privado no uso de helicópteros,
convites para “esbórnias” internacionais. Pior, incauto, deixa-se fotografar em
meio a festinhas típicas de adolescentes.
Não é preciso ser grande analista (algo que esse escriba não é) para
estabelecer relações. Por exemplo, entre a criação da CPI do Cachoeira e o
julgamento do Mensalão, que dá sinais de finalmente entrar na agenda do STF. A
mídia, feito mariposa em redor da lâmpada, repercute jogos de cena, como os do
ex-presidente Collor, e perde o foco.
No afã de embaçar, tirando o que é sério do foco, deputados e senadores que
integram a CPI levantaram dúvidas, há duas semanas, sobre a lisura do
procurador-geral da República, Roberto Gurgel, nas investigações sobre os
negócios do contraventor Carlos Cachoeira. Presente no lançamento do Anuário
da Justiça 2012, deste Conjur, ocorrido na quarta-feira dia 9, nos jardins
do STF em Brasília, o procurador-geral foi alvo de animados abraços e de
manifestações de apoio de ministros do STF e juristas presentes.
Responsável pela acusação dos 38 réus suspeitos de envolvimento no suposto
esquema de compra de apoio político no Congresso durante o governo do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o procurador-geral Roberto Gurgel
retrucou: “Tenho dito que, na verdade, o que nós temos são críticas de pessoas
que estão morrendo de medo do julgamento do mensalão. São pessoas que na verdade
estão muito pouco preocupadas com as denúncias em si mesmo, com os fatos de
desvio de recursos e corrupção”.
Essa hipótese explica muita coisa.
Na coluna “Painel”, publicada naquela mesma quarta-feira 9, a Folha de
S.Paulo afirmava que o PT investe para transformar a CPI do Cachoeira, que
deveria averiguar a relação do contraventor com políticos, em uma investigação
do trabalho da imprensa. E o traque mais articulado nessa direção foi o dado
pela TV Record em sua revista eletrônica dominical e a semanal de Mino Carta,
trazendo para o centro da discussão o editor da revista Veja em
Brasília, Policarpo Júnior: ele “já sabia das relações entre Cachoeira e
Demóstenes”, afirma CartaCapital na capa do dia 16.
E aí sobram lições de “bom jornalismo” para todos os lados. Em alguns
momentos, dá a impressão de estar lendo o Castelo de Âmbar, a
reportagem em forma de ficção em que Mino destilou, doze anos atrás, seu
ressentimento contra o ex-patrão, a quem agora insiste em comparar com o
australiano Rupert Murdoch. Nessas aulas sobre prática jornalística, o deputado
Paulo Teixeira (PT-SP) reproduz em sua página na internet uma entrevista
concedida ao blog “Viomundo” em que afirma: “Na minha opinião, ele
[Policarpo Júnior] extrapolou a sua atividade profissional. Ele ficou
muito além do que é permitido. E nós temos de fazer a defesa do sistema
democrático. Ele impõe limites ao político, ao empresário e ao jornalista.
Liberdade de imprensa não é liberdade de prática criminosa. Liberdade de
imprensa é uma luta pela liberdade e não pela prática do ilícito”.
Como diz o provérbio latino, que o deputado por ter feito um bom curso de
direito deve conhecer, “Ne sutor ultra crepidam”, não vá o sapateiro além das
sandálias. (E ficar muito além faz sentido? Ou foi muito além ou ficou muito
aquém.)
Miro Teixeira (PDT-RJ), outro deputado advogado mas que entende mais do que
sandálias, por ter sido repórter do jornal carioca O Dia, além de
ministro das Comunicações, discorda do colega petista. Ao classificar como um
atentado à liberdade de imprensa e de caráter persecutório a insistência do
presidente da CPI (ninguém menos que Fernando Collor de Mello) em incriminar o
chefe da sucursal de Veja, ele declarou: “A função do jornalista é
investigar. O jornalista de investigação conversa, sim, com pessoas próximas aos
crimes”.
Fico num exemplo, o da revista Placar, quando em 20 de outubro de
1982, fez a histórica denúncia “Desvendamos a máfia da loteria esportiva”.
Desmascarou 125 jogadores, juízes, técnicos, cartolas e jornalistas envolvidos
nas fraudes dos resultados de jogos da loteria esportiva, fruto de um ano de
investigação do jornalista Sérgio Martins. Muitos procuraram desqualificar o
mérito, alegando que o repórter se baseara em informações de um ex-mafioso, um
radialista arrependido que fizera parte do esquema. Mas a quem Sérgio Martins
deveria recorrer? A alguma monja carmelita ou a algum pai de santo?
O editor de Veja em Brasília fez o que um repórter faz: apura uma
informação recebida, dada por quem for, checa se é um dado plantado ou se é
verdade, faz o contraditório, como também se diz em jornalismo. O jornalista
pode, sim, sem problemas, ter relacionamento com ministros e governadores, como
fontes. Ou com bicheiros ou lobbistas.
O delegado da Polícia Federal, Raul Alexandre Sousa, que comandou a Operação
Vegas, garantiu que não foi encontrado durante a investigação nenhum indício que
sugerisse relações indevidas entre jornalistas com a equipe de Cachoeira,
segundo publicou a Folha de S.Paulo. Já o delegado Raul Marques, em
sessão secreta da CPI, insistiu que a relação entre o redator-chefe de Veja
e o contraventor era a de um jornalista e sua fonte de informações.
Como se mencionou nesta coluna há duas semanas, a profissão do jornalista
também é regida por um código de ética. E em seu artigo 6, este código afirma
ser dever do jornalista “Parágrafo 7 — Combater e denunciar todas as formas de
corrupção, em especial quando exercidas com o objetivo de controlar a
informação”.
Não consta que Policarpo Júnior tenha usado de subterfúgios condenados pelo
Código de Ética, como “valer-se da condição de jornalista para obter vantagens
pessoais” (artigo 7, parágrafo 9); “divulgar informações obtidas de maneira
inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou
microfones ocultos” (artigo 11, parágrafo 3).
Coisa que não pode alegar o incauto governador do Rio, aquele do baile dos
guardanapos. Na semana passada, o deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) foi
flagrado enviado uma mensagem prometendo a ele “blindagem”, na CPI em andamento.
Ou seja, alguém está se valendo de sua condição (de deputado) para garantir
vantagens (no caso, ao governador).
Para terminar essa arenga sobre falta de ética, registro a fala do
ex-presidente Lula, que sempre negou saber do mensalão (improbidade
administrativa, por não estar atento às andanças de seus braços direitos). Ao
ser galardoado nesta segunda-feira com o título de cidadão honorário da cidade
de São Paulo, Lula se referiu ao mensalão como “um momento em que tentaram dar
um golpe neste país”. Como disse o ex-procurador-geral da República, Antonio
Fernando Barros e Silva de Souza (que denunciou os diversos membros do governo
Lula envolvidos com o mensalão, grupo por ele chamado de “quadrilha”), “Negar a
existência do mensalão é uma afronta à democracia”. Lula – e com ele o PT –
prefere entender que tudo não passou de uma baita armação da imprensa. Então,
vamos mandar para a fogueira o editor da Veja em Brasília. E não se
fala mais nisso.
Carlos
Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista
diálogos & debates.
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