Por DEMÉTRIO MAGNOLI - O GLOBO
De “caçador de marajás”, Fernando Collor transfigurou-se em caçador de
jornalistas. Na CPI do Cachoeira, seu alvo é Policarpo Jr., da revista “Veja”, a
quem acusa de associar-se ao contraventor “para obter informações e lhe prestar
favores de toda ordem”. Collor calunia, covardemente protegido pela cápsula da
imunidade parlamentar. Os áudios das investigações policiais circulam entre
políticos e jornalistas — e quase tudo se encontra na internet. Eles atestam que
o jornalista não intercambiou favores com Cachoeira. A relação entre os dois
era, exclusivamente, de jornalista e fonte — algo, aliás, registrado pelo
delegado que conduziu as investigações.
Jornalistas obtêm informações de inúmeras fontes, inclusive de criminosos.
Seu dever é publicar as notícias verdadeiras de interesse público. Criminosos
passam informações — verdadeiras ou falsas — com a finalidade de atingir
inimigos, que muitas vezes também são bandidos. O jornalismo não tem o direito
de oferecer nada às fontes, exceto o sigilo, assegurado pela lei. Mas não tem,
também, o direito de sonegar ao público notícias relevantes, mesmo se sua
divulgação é do interesse circunstancial de uma facção criminosa.
Os áudios em circulação comprovam que Policarpo Jr. seguiu rigorosamente os
critérios da ética jornalística. Informações vazadas por fontes diversas,
inclusive a quadrilha de Cachoeira, expuseram escândalos reais de corrupção na
esfera federal. Dilma Rousseff demitiu ministros com base naquelas notícias,
atendendo ao interesse público. A revista na qual trabalha o jornalista foi a
primeira a publicar as notícias sobre a associação criminosa entre Demóstenes
Torres e a quadrilha de Cachoeira — uma prova suplementar de que não havia
conluio com a fonte. Quando Collor calunia Policarpo Jr., age sob o impulso da
mola da vingança: duas décadas depois da renúncia desonrosa, pretende ferir a
imprensa que revelou à sociedade a podridão de seu governo.
A vingança, porém, não é tudo. O senador almeja concluir sua reinvenção
política inscrevendo-se no sistema de poder do lulopetismo. Na CPI, opera como
porta-voz de José Dirceu, cujo blog difunde a calúnia contra o jornalista. Às
vésperas do julgamento do caso do mensalão, o réu principal, definido pelo
procurador-geral da República como “chefe da quadrilha”, engaja-se na tentativa
de desqualificar a imprensa — e, com ela, as informações que o incriminam.
O mensalão, porém, não é tudo. A sujeição da imprensa ao poder político
entrou no radar de Lula justamente após a crise que abalou seu primeiro mandato.
Franklin Martins foi alçado à chefia do Ministério das Comunicações para
articular a criação de uma imprensa chapa-branca e, paralelamente, erguer o
edifício do “controle social da mídia”. Contudo, a sucessão representou uma
descontinuidade parcial, que se traduziu pelo afastamento de Martins e pela
renúncia ao ensaio de cerceamento da imprensa. Dirceu não admitiu a derrota,
persistindo numa campanha que encontra eco em correntes do PT e mobiliza
jornalistas financiados por empresas estatais. Policarpo Jr. ocupa, no momento,
o lugar de alvo casual da artilharia dirigida contra a liberdade de
informar.
No jogo da calúnia, um papel instrumental é desempenhado pela revista “Carta
Capital”. A publicação noticiou falsamente que Policarpo Jr. teria feito “200
ligações” telefônicas para Cachoeira. Em princípio, nada haveria de errado
nisso, pois a ética nas relações de jornalistas com fontes não pode ser medida
pela quantidade de contatos. Entretanto, por si mesmo, o número cumpria a função
de arar o terreno da suspeita, preparando a etapa do plantio da acusação, a ser
realizado pela palavra sem freios de Collor. Os áudios, entretanto, evidenciaram
a magnitude da mentira: o jornalista trocou duas, não duzentas, ligações com sua
fonte.
A revista não se circunscreveu à mentira factual. Um editorial, assinado por
Mino Carta, classificou a suposta “parceria Cachoeira-Policarpo Jr.” como
“bandidagem em comum”. Editoriais de Mino Carta formam um capítulo sombrio do
jornalismo brasileiro. Nos anos seguintes ao AI-5, o atual diretor de redação de
Carta Capital ocupava o cargo de editor de “Veja”, a publicação na qual hoje
trabalha o alvo de suas falsas denúncias. Os editoriais com a sua assinatura
eram peças de louvação da ditadura militar e da guerra suja conduzida nos
calabouços. Um deles, de 4 de fevereiro de 1970, consagrava-se ao elogio da
“eficiência” da Operação Bandeirante (Oban), braço paramilitar do aparelho de
inteligência e tortura do regime, cuja atuação “tranquilizava o povo”. O
material documental está disponível no blog do jornalista Fábio Pannunzio
(http://www.pannunzio.com.br/), sob a rubrica “Quem foi quem na ditadura”.
Na “Veja” de então, sob a orientação de Carta, trabalhava o editor de
Economia Paulo Henrique Amorim. A cooperação entre os cortesãos do regime
militar renovou-se, décadas depois, pela adesão de ambos ao lulismo. Hoje,
Amorim faz de seu blog uma caixa de ressonância da calúnia de Carta dirigida a
Policarpo Jr. O fato teria apenas relevância jurídica se o blog não fosse
financiado por empresas estatais: nos últimos três anos, tais fontes públicas
transferiram bem mais de um milhão de reais para a página eletrônica,
distribuídos entre a Caixa Econômica Federal (R$ 833 mil), o Banco do Brasil (R$
147 mil), os Correios (R$ 120 mil) e a Petrobras (que, violando a Lei da
Transparência, se recusa a prestar a informação).
Dilma não deu curso à estratégia de ataque à liberdade de imprensa organizada
no segundo mandato de Lula. Mas, como se evidencia pelo patrocínio estatal da
calúnia contra Policarpo Jr., a presidente não controla as rédeas de seu governo
— ao menos no que concerne aos interesses vitais de Dirceu. A trama dos bons
companheiros revela a existência de um governo paralelo, que ninguém
elegeu.
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