Da CONJUR
Parte dos diálogos captados pela Polícia Federal nas investigações da
operação Monte Carlo revela que o senador Demóstenes Torres (sem partido-GO) e
outros membros do grupo do empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos
Cachoeira, insinuavam interferência indevida em decisões judiciais. Em alguns
trechos, o senador e outras pessoas simulam influência sobre ministros do
Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, mas em nenhum caso o
aventado lobby teve resultado.
No afã de impressionar Cachoeira, Demóstenes, por exemplo, não economiza
criatividade. Em um caso quando o ministro Gilmar Mendes reconhece a competência
do STF para examinar um conflito federativo (algo óbvio quando União e estados
entram em litígio), o senador não só diz que ele “conseguiu” a decisão, como
também que o ministro “deu repercussão geral”.
A ação era uma Reclamação. Como se sabe, é exigido o reconhecimento de
repercussão geral apenas nos recursos extraordinários que chegam ao Supremo,
nunca em reclamações. E ainda que isso fosse possível, o reconhecimento de
repercussão depende do voto de 2/3 do plenário do tribunal. O ministro não a
reconhece sozinho.
O senador explorava prestígio de um lado e a ignorância de seu chefe, ou
cliente, de outro. Não é um truque novo. Sabe-se que existe a prática de
advogados que, por conhecerem a jurisprudência dos tribunais, “preveem” com
certa facilidade o desfecho do processo e convencem o cliente de que é preciso
“comprar” a decisão. Como a vitória é certa, embolsam o dinheiro e, de quebra,
vendem a imagem de que têm influência junto a juízes que, muitas vezes, sequer
desconfiam que estejam à venda.
O caso do senador Demóstenes Torres se enquadra nessa prática. Como já
observou um ministro aposentado, depois de uma audiência, o advogado pode dizer
o que quiser ao cliente, e terá 50% de chances de acertar. O senador e
assessores que informavam Cachoeira sobre causas de seu interesse erraram — ou
mentiram ao chefe —, ao menos com ministros citados nominalmente nas
conversas.
Um exemplo é o voto do ministro Mauro Campbell Marques, do STJ, em um dos
recursos monitorados pelo grupo. No dia 15 de junho do ano passado, Demóstenes e
Cachoeira conversam e citam o ministro:
Cachoeira: — Agora, o seguinte, você viu aí esse vereador de
(incompreensível) esse Campbell, ele pediu aí, parece que, você leu aí? Tem que
correr atrás disso aí.
Demóstenes: — Pediu, é pedido nosso, você mandou eu ir lá atrás dele pra
pedir, uai. Eu já voltei nele lá e falei que não tem interesse não. Pregar fumo
no cara aí.
Cachoeira: — Pediu agora, pediu depois que você falou com ele,
uai.
Demóstenes: — De jeito nenhum, ele pediu vista lá atrás, nós fomos lá,
aquela época, você levou ele lá, eu pedi e aí eu fui atrás do ministro e pedi. O
ministro pediu pauta pra incluir agora. Eu fui lá e pedi pra ele devolver e
pregar fumo no sujeito. Falei que não tinha mais interesse. Você
entendeu?
Mas o ministro Mauro Campbell não “pregou fumo” no sujeito em questão. E nem
poderia, porque já havia proferido seu voto, que contrariava os interesses do
grupo de Carlinhos Cachoeira, oito dias antes da conversa, na sessão de 7 de
junho de 2011.
Campbell votou pela anulação do processo por improbidade administrativa
contra o presidente da Câmara Municipal de Anápolis (GO), Amilton Batista de
Faria (PTB), exatamente como não queria o grupo. O ministro considerou que houve
cerceamento de defesa porque ele não foi intimado para a oitiva de uma das
testemunhas da ação.
O ministro Campbell Marques foi o único a votar pela anulação do processo
contra o vereador. Outros três ministros da 2ª Turma acolheram a tese de que a
falta de intimação não é suficiente para anular o processo por improbidade, sob
a acusação de que o vereador contratou uma funcionária fantasma. Logo, pode-se
concluir que “pregaram fumo no sujeito” a pedido de Demóstenes? Não.
Embates como esses são sempre controversos em tribunais e existem decisões
fundamentadas em ambos os sentidos. A tese vencedora também encontra abrigo na
melhor doutrina jurídica. O relator do caso, ministro Humberto Martins, afirmou
em seu voto: “Em uma colisão de princípios, não há uma relação de precedência
absoluta. A preponderância de um sobre o outro dependerá do caso concreto, que,
em razão das específicas condições, revelará qual princípio tem mais peso e por
tal motivo deve prevalecer”.
No caso, a maioria dos ministros entendeu que a falta de intimação, apesar de
irregular, não trouxe prejuízo ao réu. Por isso, o recurso foi negado. Quem
conhece e quem não conhece o funcionamento dos tribunais, quem é e quem não é
recebido por ministros, poderia prever esse resultado, com 50% de chances de
acertar. O próprio relatório da PF, no caso, afirma que não há nada que mereça
ser investigado na conduta dos ministros.
Habeas Corpus negado
Outras conversas captadas pela
Policia Federal mostram que o grupo conversou sobre um pedido de Habeas Corpus
feito ao Supremo Tribunal Federal em favor do prefeito Olavo Julio Macedo (PPS),
da cidade de Piraquê, em Tocantins, que havia sido afastado e preso sob acusação
de fraudes financeiras. Mais uma vez, a propalada influência do grupo não
influiu na decisão.
No inquérito da operação Monte Carlo, consta que Gleyb Ferreira da Cruz, um
dos colaboradores próximos de Cachoeira, e Eney Curado Byron, identificado pela
PF como advogado, conversam sobre como influir na decisão do ministro Gilmar
Mendes, sorteado relator do pedido de Habeas Corpus. A intenção era liberar o
prefeito da prisão.
Em um trecho da conversa, Gleyb pergunta para Eney se há “mais alguma coisa”
para conversar. O advogado pede para o interlocutor manter contato no Supremo,
para liberar o prefeito. As conversas são mantidas nos dias 9 e 10 de junho de
2011. No dia 29 do mesmo mês, o ministro Gilmar Mendes nega o Habeas Corpus.
O pedido esbarrou na Súmula 691 do STF, que impede os ministros de conceder
liminar em Habeas Corpus contra liminar de tribunal superior, no caso, o STJ. Ou
seja, salvo em casos em que há flagrante constrangimento ilegal ou um direito
evidente ferido pela decisão questionada, o Supremo não julga a questão. Foi o
que se deu no caso. O ministro rejeitou o pedido de Habeas Corpus.
Depois, em 5 de dezembro, Gilmar Mendes negou mais um pedido de Habeas Corpus
do prefeito, que queria voltar ao cargo depois que o Tribunal de Justiça de
Tocantins lhe concedeu liberdade. Levantamento feito pela assessoria do ministro
aponta que dos seis processos despachados por Gilmar Mendes em que o advogado
Eney Curado Byron aparece como parte, o resultado lhe foi desfavorável em
todos.
Em outra conversa, esta entre Demóstenes e Cachoeira, o senador afirma:
“Conseguimos puxar aqui pro Supremo uma ação da Celg aí, viu!? O Gilmar
mandou buscar... deu repercussão geral pro trem aí... pode... dependendo da
decisão dele, pode ser que essa Celg... essa Celg se salva, viu!”. A
conversa segue:
Cachoeira: — Hum... bom... e como é que tá... e esses aí que...
Demóstenes: — É, eu acho que esse trem pode dar certo, viu. Ele consegue
tirar uns 2, 3 bilhões das costas da Celg... aí dá uma levantada,
viu...
Cachoeira: — Nossa Senhora! Bom pra caceta, hein!
A ação da Celg é uma Reclamação ajuizada pela companhia de energia elétrica
de Goiás, que recebeu o número 12.130. A Celg reclama indenização da União. A
causa, como demonstra a jurisprudência do Supremo, não foi puxada pela trupe de
Cachoeira, mas porque o STF é quem detém competência para julgar conflitos entre
entes federativos.
Na decisão em que determina a subida dos autos ao Supremo, Gilmar Mendes cita
precedentes da ministra Cármen Lúcia e do ministro Joaquim Barbosa, por exemplo,
que subsidiam sua determinação. Como o ministro esclarece, para que a discussão
atraia a competência do STF, “é necessário que o conflito instaurado entre os
entes do Estado possa, efetivamente, vulnerar o pacto federativo”. O que é claro
na ação em questão.
Neste caso, como no do STJ, a própria Policia Federal, em seu relatório,
afirma: “Note-se que não há qualquer referência de ilegalidade no procedimento
de Demóstenes com o ministro Gilmar Mendes. Este diálogo, dentre outros, serve
fundamentalmente para demonstrar que Demóstenes Torres tem o hábito de informar
Carlinhos Cachoeira de sua atuação política, além de já ter pedido alguns
conselhos políticos a Cachoeira”.
Pedra cantada
Em outros diálogos em que ministros são
citados, o senador chega a contar vantagem sobre um voto que já havia sido
proferido. Demóstenes diz a Cachoeira que o governo federal condicionou a
nomeação do ministro do Supremo Luiz Fux à absolvição de réus que foram
denunciados no processo do mensalão e ao voto contra a aplicação da Lei da Ficha
Limpa para as eleições de 2010.
O senador afirma que um amigo seu recusou a vaga por conta das condições
impostas pelo Planalto. Na conversa, Carlinhos Cachoeira pergunta: “O Fux votou
a favor da Ficha Limpa? Vai valer já a partir de 2012?”. Demóstenes responde:
“Exatamente. Já tava cantada a pedra. Eu te contei que o meu amigo lá recusou e
as condições eram aquelas: Vai votar assim e vai votar para absolver a turma do
mensalão”. A referência ao mensalão entra na conta dos 50% de chances de êxito.
Já a referência sobre o voto de Fux na Lei da Ficha Limpa é algo semelhante a
cantar os números da loteria depois do sorteio.
Demóstenes Torres tinha trânsito livre nos tribunais. Foi presidente da
Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a mais importante comissão da
Casa. Deste posto, tinha contato quase que diário com ministros, já que cuidava
do trâmite de projetos que interessavam ao Poder Judiciário. Logo, teve inúmeros
interlocutores na Justiça e ajudou na aprovação de importantes projetos de
racionalização do Judiciário. Hoje, sabe-se, vendia a imagem de quem tinha
influência ao amigo Carlinhos Cachoeira com objetivos pouco recomendáveis.
Pouco antes de ser abatido pelo escândalo Cachoeira, o senador apresentou uma
Proposta de Emenda à Constituição para ampliar os poderes do Conselho Nacional
de Justiça, em meio à discussão sobre a competência disciplinar do órgão, depois
julgada constitucional pelo Supremo. Uma de suas principais interlocutoras foi a
ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça. A própria ministra já
afirmou a amigos e colegas de STJ que falou com o senador quase que diariamente
por um considerável período. O fato demonstra que a rede de relacionamento do
senador era ampla e eclética, mas não capaz de macular seus interlocutores pelo
fato de manterem contatos com ele.
Não é a primeira vez — nem será a última — que ministros são citados em
conversas e descobrem, só depois que as transcrições aparecem em processos, que
foram “vendidos”. Em 2007, por exemplo, o então ministro do Supremo Tribunal
Federal Sepúlveda Pertence enviou à Procuradoria-Geral da República
esclarecimentos sobre um caso em que gravações da Polícia Federal flagraram
advogados dando a entender que conseguiram liminar graças ao pagamento de
propina.
O tom da manifestação foi de indignação. “A serenidade que tenha conseguido
preservar custou-me o amargo esforço de vencer o constrangimento de remexer o
lixo das baixezas humanas e sufocar a ira justificada por ver o próprio nome
enrolado na onda levantada pela calúnia dos vagabundos e a leviandade de
irresponsáveis agentes públicos”, afirmou Pertence no ofício à PGR.
Na ocasião, o ministro colocou à disposição a sua movimentação bancária e
elencou dados objetivos, que mostraram outras dezenas de vezes em que ele
decidiu exatamente da mesma forma da decisão colocada sob suspeita no curso de
investigações da PF.
A matéria que gerou a controvérsia tratava da base de cálculo da Cofins. A
Emenda Constitucional 20 permitiu o alargamento da base de cálculo da
contribuição ao determinar que ela incidisse sobre faturamento ou receita bruta
das empresas. Mas antes mesmo da aprovação da Emenda, para apressar o processo e
poder arrecadar mais rapidamente, o governo editou uma Medida Provisória em vez
de enviar projeto de lei ao Congresso.
A questão chegou ao Supremo, que decidiu que o alargamento da base de cálculo
da Cofins era inconstitucional porque não poderia ser regulamentado por MP. A
partir da decisão, os 11 ministros do Supremo passaram a decidir no mesmo
sentido quando o que estava em discussão era o alargamento da base de cálculo da
Cofins por meio da Lei 9.718/1998.
Levantamento feito pela assessoria de Pertence na ocasião revelou que, de
2004 até 2007, o ministro havia despachado 54 pedidos de Medida Cautelar
referentes ao tema com a mesma celeridade e no mesmo sentido da ação que gerou a
desconfiança. Das 54 decisões, 43 foram tomadas num espaço de uma semana — 23
delas no dia seguinte ao do pedido. Com esses dados, Pertence jogou por terra
alegações de que a decisão colocada sob suspeita teria sido tomada “em tempo
recorde”.
Nas investigações, não havia provas nem indicação da participação do ministro
em qualquer negociação. Ele não era parte das gravações e nem mesmo foi citado.
Mas o caso referido nas conversas gravadas foi de sua relatoria. Por isso, teve
de vir a público esclarecer os fatos.
Conto do vigário
O conto da venda de sentença, em casos
que o advogado conhece previamente a jurisprudência ou a posição do juiz, é
antigo e bastante conhecido. Certa vez, um cliente quis certificar-se de que o
pagamento a um ministro do STF seria feito. O advogado, conhecido em Brasília, à
distância, no intervalo de uma sessão, entregou um envelope ao ministro onde,
supostamente, estaria um cheque de uma quantia equivalente a R$ 500 mil (a moeda
era outra à época). Dentro do envelope, na verdade, havia um convite de
casamento.
Anos depois, num encontro casual, o cliente que pensara ter “comprado” a
decisão, cruzou com o ministro e resolveu agradecer o “favor”. O ministro,
perplexo, tentou entender o que acontecera e, juntando informações, reconstituiu
a tramoia — o que serviu para desmascarar o golpista.
Antes da internet, quando uma decisão levava dias para se tornar conhecida,
há o registro de pelo menos um caso em que advogado de outro estado acompanhava
julgamentos do TST pela manhã. Com um resultado favorável na mão, o mau
profissional telefonava para os clientes e avisava que sem pagar determinada
quantia naquele dia, o pedido seria negado. Feito o depósito, horas depois o
advogado informava que a tática funcionara.
Outro caso que entrou para o folclore dá conta de que o irmão de um juiz
“vendia” a decisão favorável às duas partes envolvidas. Depois do julgamento,
devolvia o dinheiro a quem perdeu dizendo que o irmão não pudera atender ao
pedido.
Rodrigo
Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em
Brasília.
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