sábado, 6 de março de 2010

ARTIGO: Lágrimas de Michelle Bachelet

Do blog do NOBLAT

Uma noite vi a terra tremer também em Santiago. Os anos 80 caminhavam para o fim e, de férias do Jornal do Brasil, estava hospedado com Margarida (então repórter de A Tarde, na Bahia) em um hotel tradicional a menos de 200 metros do Palácio La Moneda, já restaurado e livre da presença do general Augusto Pinochet, que o havia mandado bombardear no dia da morte do presidente Salvador Allende.
Era madrugada e fazia frio, havia andado o dia inteiro por montanhas da Cordilheira, tomando pisco e vinho. Caí como um saco de cimento na cama e peguei no sono. Despertei aos poucos como quem sai de um sonho. O quarto balançava de leve e a sensação era a de estar deitado em colchão cheio de água, quase flutuando. Efeito do pisco?.
Só pulei de vez do leito quando vieram os primeiros gritos da rua e os sussurros de outros apartamentos e corredores do hotel. Então despertei e o instinto - ou a curiosidade de jornalista - me empurrou, como recomendam os melhores manuais de sismos, para debaixo da pilastra de uma das janelas do quarto.
Abri a janela ainda a tempo de ver as luzes que tremiam com os postes no cerro de San Cristobal, à distância. Espetáculo de beleza telúrica, mas apavorante ao mesmo tempo. E, embora felizmente fugaz neste caso, absolutamente inesquecível para o turista acidental.
Logo os tremores cessaram, sem deixar vítimas humanas ou vestígios de destruição. No dia seguinte, os chilenos quase não falavam do assunto em suas conversas habituais, a não ser se interrogados sobre o fenômeno da madrugada. As TVs e rádios faziam apenas referências rápidas. E ponto final.
Nada nem de longe parecido com a tragédia monumental desta semana no Chile, no tristonho final do governo da socialista Michelle Bachelet, que tem mais de 70% de aprovação nas pesquisas de opinião pública, mas não conseguiu eleger o sucessor.
Na próxima quinta-feira, será substituída pelo conservador Sebastián Piñera. Este, empresário e amigo da velha casta e herdeiros de militares do tempo de Pinochet e dos saudosistas civis de seu regime, que não são poucos.
O violento terremoto de 8.8 graus na escala Richter, seguido de pavoroso e mortal tsumani na costa chilena do Pacífico, já havia custado até ontem a vida de 802 pessoas, deixado mais 2 milhões de chilenos ao desabrigo.
Gente apavorada que sai correndo em desespero para as montanhas próximas a cada repique de tremor ou aviso de tsunami nas áreas portuárias e históricas de Concepcion. Até o famoso Festival Internacional da Canção de Viña del Mar, cidade próxima à área do epicentro do sismo da semana passada, foi suspenso.
As imagens que as cadeias internacionais de televisão e seus repórteres na área do desastre e comentaristas competentes no estúdio - em especial a CNN em espanhol - tem mostrado diariamente, são desoladoras: regiões inteiras em ruínas, monumentos históricos destruídos de Santiago a Concepcion, carros nos precipícios dos viadutos e modernas rodovias destruídas; famílias perdidas e desesperadas em busca de filhos, maridos, pais e mães desaparecidos.
Saques, pilhagens, prisões, militares de volta às ruas de um país convulsionado e dividido às vésperas da saída de Bachelet e da chegada de Piñera ao poder.
Infraestrutura arruinada, prejuízos financeiros imensos no país mais desenvolvido da América Sul e um dos mais belos e civilizados do continente, que já produziu dois Nobel de Literatura: Gabriela Mistral e Pablo Neruda.
O primeiro levantamento apresentado na CNN indica que serão necessários mais de três anos - "talvez todo o período do novo governo" de Piñera, como disse a presidente em uma emissora de rádio na visita a Concepcion e Maule - e investimentos maciços com indispensável ajuda internacional coordenada pela ONU, para a recuperação dos desastres desta semana.
Agora com as operações de resgate e atendimento aos sobreviventes mais organizados, a descoberta de novos desaparecidos fez o número de mortos subir para 802 no Chile, informou ontem o Escritório Nacional de Emergências. As lágrimas rolaram de público pela primeira vez dos olhos de Bachelet ao transmitir a notícia à população e admitir em entrevista a uma rádio, que o número de mortos ainda pode subir.
Peço socorro à poesia do chileno maior, Pablo Neruda, na "Ode à Tristeza", para terminar as linhas deste artigo:
"A tristeza não pode/entrar por estas portas. Pelas janelas /entra o ar do mundo, As rosas vermelhas novas,/ as bandeiras bordadas do povo e suas vitórias. /Não podes./ Aquí não entras. Sacode tuas asas de morcego, / eu pisarei as penas que caem de teu manto, / eu barrarei os pedaços de teu cadáver/ até as quatro pontas do vento,/ eu te torcerei o pescoço,/ te coserei os olhos,/ cortarei tua mortalha /e enterrarei teus ossos roedores debaixo da primavera de uma macieira".
Bravo, poeta! O Chile sobreviverá!!!

Vitor Hugo Soares é jornalista. E-mail:vitor_soares@terra.com.br

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