Da CONJUR
A Flórida criou a receita que dá a qualquer cidadão uma licença para matar.
Desde que tudo seja feito da maneira certa, não há risco de processo criminal e
nem mesmo de o cidadão ser levado pela Polícia para a cadeia. Basta explicar aos
policiais que atirou na vítima porque sentiu medo de perder a vida ou de ser
gravemente ferido, em decorrência de um confronto, por qualquer razão, em
qualquer lugar. E invocar a proteção da lei Stand your Ground (Não ceda
terreno), que substituiu a doutrina da legítima defesa pela doutrina do
"homicídio justificável". A lei retirou a obrigação de o cidadão tentar se
retirar e evitar o uso de "força letal".
O diretor-executivo da "Coalisão da Flórida para Parar a Violência com Arma",
Arthur Hayhoe, explicou a receita ao jornal USA Today: para escapar da
Justiça, basta confrontar a vítima em um lugar ou em um momento em que não haja
testemunhas. Depois, provocar o confronto e esperar que o outro ataque ou pelo
menos tente se defender. Se ela tiver alguma coisa na mão, melhor ainda. Ajuda a
mostrar que o perigo existia. Atire para matar. "A ironia dessa situação é que é
preciso matar, para se safar de uma investigação criminal", disse a professora
da Faculdade de Direito de Savannah Elizabeth Megale. Se não há testemunhas, é
uma palavra contra a outra. Mortos não falam. Muitas vezes, o agressor acaba
preso quando a vítima não morre", declarou.
A National Rifle Association (NFA), a associação americana que reúne
os fabricantes de armas dos EUA e que conseguiu convencer políticos da Flórida a
aprovar a lei Stand your Ground, se encarregou de levá-la a outros
estados. No todo, 24 estados adotaram a lei. E, em todos os eles, os americanos
estão se debatendo com o monstro que criaram. A lei impede, na maioria dos
casos, a ação da Polícia, que teme ser processada se abrir investigação criminal
ou, pior, colocar na cadeia um assassino que invoca a proteção dessa lei. Inibe
a ação dos promotores, que não podem processar um criminoso que alega estar
protegido por essa lei. E obriga juízes a rejeitarem ações criminais, antes que
elas se iniciem, quando a denúncia é feita.
A justificativa para a criação dessa lei foi a de que ela inibiria crimes,
como assaltos, porque os criminosos saberiam que os cidadãos poderiam estar
armados e poderiam reagir com tiros. Mas o efeito foi diverso. Enquanto não se
tem notícia de assaltantes tenham sido contidos, amontoam-se os casos de
criminosos que escapam da Justiça, porque mataram com a licença que a lei lhe
concedeu.
Mãos atadas
Membros do Judiciário americano e juristas
também se queixam das leis que criaram um sistema exageradamente duro de fixação
de sentenças. E ainda das leis que permitem aos promotores negociarem com os
réus e seus advogados a confissão de culpa, em troca de uma pena menor. Essas
leis transferem o poder de fixação de penas dos juízes ou dos jurados para os
promotores. E os juízes ficam de mãos atadas.
De acordo com o jornal The New York Times, apenas um, em cada 40
casos criminais, realmente chega ao tribunal do júri. Assim, 39 réus em 40
preferem aceitar a pena proposta pelos promotores, em vez de correr o risco de
ser sentenciado a penas muito altas, preestabelecidas em lei. Nesses casos, quem
realmente decide que sentenças devem ser dadas aos réus são os promotores,
reclamam os juízes. Ao juiz, cabe apenas referendá-las. Em 1970, quando se fez o
primeiro registro oficial desse tipo de acordo, essa relação foi de 1/12.
Essas situações, em muitos casos, estão atadas a leis que estabelecem penas
mínimas para determinados tipos de crime. Recentemente, uma mulher negra, também
da Flórida, foi sentenciada a 20 anos de prisão porque deu um tiro de
advertência, contra a parede, para assustar o ex-marido que, segundo ela, a
ameaçava. Ela recusou um acordo proposto pela promotoria de pegar apenas três
anos de cadeia, em troca da confissão de culpa, por se considerar inocente e por
não querer seu nome comprometido por uma condenação judicial.
Ela não foi beneficiada pela lei Stand your ground, porque não matou
o marido. Vivo, ele foi ao tribunal do júri e testemunhou contra ela. Com a
ajuda dele, a Promotoria convenceu os jurados de que ela foi a parte agressiva
na história. Ela foi condenada por "agressão com circunstâncias agravantes pelo
uso de arma fatal". Pena mínima predeterminada pela lei: 20 anos de prisão. De
mãos atadas pela lei, o juiz sequer pode levar em consideração circunstâncias
atenuantes ou fixar uma pena proporcional a sua avaliação da gravidade do crime.
Acabou, de certa forma, pedindo desculpas à ré, ao dizer que, infelizmente, não
poderia fazer o que muita gente lhe pediu para fazer e o que ele faria: aplicar
uma pena bem mais branda. "O Legislativo me negou o arbítrio para decidir sobre
a sentença", declarou.
A justificativa para a criação dessas leis, que estabelecem penas de prisão
extremamente altas, foi a de coibir a criminalidade. E, se crimes são cometidos
e descobertos, as leis podem desestimular longos julgamentos no tribunal do
júri, ao dar poder de negociação à Promotoria, que oferece uma pena muito menor
em troca da confissão de culpa, encerrando-se o caso com a anuência do juiz.
Elas não coibiram a criminalidade, mas esvaziaram os tribunais. No entanto, a
negociação da pena é um benefício que favorece as pessoas que realmente
cometeram crimes, que aceitam de pronto a oferta da Promotoria, e prejudicam as
inocentes, que se recusam a confessar crimes que não cometeram. Muitas vezes,
elas vão ao julgamento, são condenadas, e pegam penas exageradamente altas.
A lei que mais incomoda toda a comunidade jurídica americana, no entanto, é a
que estabelece pena de prisão perpétua para crianças e adolescentes que são
condenados por crimes de morte e alguns outros tipos de crime grave, como o de
estupro. A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, recentemente, que essa lei
tem de ser revista. A corte aceitou avaliar o caso de um menino negro que, aos
11 anos, foi considerado culpado por participar de um assalto em uma loja, que
terminou com o assassinato de uma funcionária.
Na verdade, o menino ficou do lado de fora da loja, quando seus dois amigos
adolescentes entraram e tentaram roubar um CD. A funcionária percebeu, pegou o
telefone para chamar a Polícia. Um dos adolescentes atirou nela. Os jurados
consideram que o menino participara do assalto, dando cobertura, do lado de
fora, à dupla que entrou na loja. Condenado por um crime, que envolveu um
assassinato, o juiz foi obrigado a fixar a pena estabelecida pela lei: prisão
perpétua. Ele tem 17 anos, agora.
Essa lei já foi amenizada pela Suprema Corte dos EUA. Antes, em alguns
estados, a lei previa pena de morte para os menores. A Suprema Corte
desautorizou a aplicação da pena capital e, agora, quer que ela seja revista,
para ser colocada dentro do razoável — e dar poder aos juízes para avaliar o
caso dentro de seu contexto real e examinar circunstâncias agravantes ou
atenuantes.
João
Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor
Jurídico nos Estados Unidos.
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