terça-feira, 13 de julho de 2010

ARTIGO: "Inelegibilidade e Presunção de Inocência."

Do Jornal CARTA FORENSE
Por Agassiz Almeida Filho*

O processo histórico-normativo por trás da evolução do Estado Constitucional - modelo de domínio político em que o Estado é estruturado e limitado por uma Constituição - tem como objetivo, entre outros aspectos, a limitação efetiva do poder político. Essa busca de limitação do poder, que condiciona a própria compreensão do Estado Constitucional, não se manifesta apenas durante o exercício do poder estatal. Ela também se faz presente no decorrer do processo eleitoral. Neste contexto, as eleições justas preparam o terreno para que a representação política levada adiante pelos candidatos eleitos esteja em harmonia com o princípio da moralidade político-representativa. Segundo uma das compreensões deste princípio, que é decorrência lógica da idéia (princípio) de representação parlamentar, os candidatos devem ter condições pessoais - intelectuais, morais etc. - de representar o povo, integrando, assim, as instâncias formais de tomada das decisões políticas.
A ausência de abuso de poder (político ou econômico) e as condições jurídico-morais a que se submetem os candidatos, por exemplo, são requisitos para garantir, tanto uma representação política comprometida com os valores e normas do Estado Constitucional, como a observância da vontade popular - princípio democrático. Dito de outro modo, o adequado funcionamento do Estado Constitucional depende do cumprimento das regras do jogo democrático, bem como da existência de representantes políticos minimamente conectados com o conteúdo normativo que condiciona o processo eleitoral e o exercício do poder político. O primeiro caso está ligado a requisitos externos ao candidato; o segundo, por sua vez, relaciona-se com critérios pessoais que possuem caráter político e representativamente vinculado. Quer dizer, o juízo de valor acerca desses requisitos precisa levar em conta a sua importância (ou ausência dela) para o exercício da representação política. O instituto da inelegibilidade eleitoral é decorrência dessa necessidade de submeter aqueles que pretendem disputar cargo eletivo ao crivo do princípio da moralidade político-representativa.
Na tentativa de tornar efetivas as regras relativas à inelegibilidade de candidatos condenados pela prática de certos delitos, entrou em vigor a Lei Complementar 135/2010, que, entre outros aspectos, relativiza o princípio da presunção de inocência nos casos apontados por ela. Por exemplo, de acordo com a referida lei são inelegíveis "os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado (...)".
Em um primeiro momento, a idéia por trás dessa relativização principiológica levada a cabo pela Lei 135/2010 parece compatível com as exigências do discurso constitucional. Afinal de contas, seu principal intento seria o de evitar que candidatos que não possuem conduta pessoal ou profissional compatível com a moralidade político-representativa pudessem participar livremente do processo eleitoral. Na verdade, contudo, trata-se de conferir caráter absoluto ao princípio da moralidade político-representativa. E, como se sabe, no plano geral e abstrato os princípios constitucionais não possuem prevalência entre si. Apenas os elementos do caso concreto podem determinar, através de um necessário juízo de ponderação, qual dentre os princípios aparentemente em conflito deve prevalecer no momento em que o magistrado vai decidir o caso.
Antes da entrada em vigor da mencionada Lei Complementar 135 já era possível impedir que pessoas condenadas em primeira instância pudessem registrar suas candidaturas. Tratava-se apenas de, com base nos elementos do caso, determinar se deveria prevalecer o princípio da presunção de inocência ou o princípio da moralidade político-representativa. A entrada em vigor da Lei Complementar 135 não altera esse quadro geral. Quer dizer, o magistrado continua com a prerrogativa constitucional de determinar, para o caso, a eventual inconstitucionalidade de dispositivo legal por quebra do princípio da presunção de inocência ou de qualquer outra norma constitucional. Nenhuma lei retira a prerrogativa do juiz de decidir de acordo com a Constituição.
Do ponto de vista jurídico, portanto, a Lei 135 praticamente não acrescenta nada às prerrogativas do juiz eleitoral no que diz respeito à declaração de eventual inelegibilidade de determinado candidato. No plano político-simbólico, por outro lado, a lei possui dois efeitos que, no final das contas, terminam se anulando: a) demonstra certa vinculação das instituições com a realização do Estado Constitucional, na medida em que defende a bandeira da moralidade político-representativa; b) atua contra o Estado Constitucional, uma vez que projeta no ordenamento jurídico a idéia de que as garantias constitucionais podem ser ab-rogadas pela lei.
Na verdade, toda essa discussão em torno da inelegibilidade dos candidatos "ficha suja" deixa de lado o verdadeiro problema com o qual se enfrenta a sociedade brasileira, em geral, e o Poder Judiciário, em particular: a distância em relação à Constituição. Foi o fato de o juiz brasileiro, em um número acentuado de casos eleitorais, não aplicar a Constituição na construção das suas decisões judiciais que deu origem a essa tendência de buscar na lei algo que a Constituição já oferecia: a possibilidade de impedir que determinadas pessoas, devido ao seu histórico judicial, acedessem aos cargos representativos.
No Estado Constitucional contemporâneo, o juiz precisa enfrentar os casos difíceis levados ao seu conhecimento, mesmo que isso importe concretizar normas jurídicas estruturalmente abertas - que possuem múltiplas possibilidades semânticas. Não se pode, por apego a uma idéia de Direito ligada aos velhos códigos dos séculos XIX e XX, negar o papel estruturante que o juiz ocupa no cenário do Estado Constitucional. E este papel, vale a pena ressaltar, continua o mesmo no que diz respeito à prerrogativa de aplicar ou não os dispositivos da Lei 135/2010: se o caso exigir, independentemente de eventual decisão do STF sobre a matéria, que se declare, com efeitos entre as partes, a inconstitucionalidade de qualquer dos seus dispositivos que vier a ferir o princípio da presunção de inocência.
Para concluir, em termos gerais e abstratos, naquilo que relativiza o princípio da presunção de inocência - caráter definitivo-eleitoral das decisões proferidas por órgão colegiado - a Lei Complementar 135/2010 é claramente inconstitucional. Resta saber se as instituições vão cumprir o seu papel ou se omitir diante da pressão de uma opinião pública que deseja "caçar o pássaro, mas não sabe em que atirar".

* Agassiz Almeida Filho
Advogado. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra, Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca/Espanha. Coordenador do Núcleo de Estudos Jurídicos da Fundação Casa de José Américo (2003-2009), Professor Titular da UEPB, Colaborador Permanente da Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais e autor de diversas obras.

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