terça-feira, 6 de julho de 2010

CIDADE: Incontinência urinária

Da Revista Veja - Brasil
Fazer xixi na rua é uma porcaria disseminada de norte a sul do Brasil. Mas, em Salvador, ela atinge níveis inacreditáveis
LEONARDO COUTINHO
"O cheiro que exalava nas ruas da cidade de Salvador era uma mistura de fumo, azeite, peixe, urina e lixo." A descrição consta dos relatos que a escritora inglesa Maria Graham fez dos três anos que passou no Brasil, no início do século XIX.
Em defesa da capital baiana, saliente-se que ela não recende mais a fumo, a azeite ou a peixe. Mas o lixo e, sobretudo, a urina continuam a infestar o ar, a corroer a reputação da cidade -e a arruinar as suas edificações. Só em 2009, a prefeitura de Salvador precisou restaurar dois viadutos e quinze passarelas cujos pilares. foram carcomidos por, diga-se com todas ás letras, xixi. A prefeitura fez as obras para evitar tragédias como a que ocorreu em novembro de 2007, quando uma parte da arquibancada do Estádio da Fonte Nova ruiu durante uma partida de futebol, matando sete pessoas e ferindo outras trinta. A perícia provou que a estrutura cedeu porque o concreto e os vergalhões de aço haviam sido corroídos pela urina dos torcedores, que costumam se aliviar no mesmo lugar onde se sentam para assistir aos jogos.
Os maus hábitos são de tal ordem que, no ano passado, a arquidiocese local teve de substituir parte das portas da catedral primacial do país, apodrecidas depois de receber esguichos durante décadas. O cardeal dom Geraldo Majella vive implorando à população de incontinentes para não usar a basílica do século XVII como banheiro público.
A urina é um líquido tão devastador por causa de seu alto grau de acidez. Ao atingir o concreto, ela reage com o cimento e elimina seus dois componentes alcalinos: o cálcio e o magnésio. Sem eles, aos poucos, a estrutura vai adquirindo uma consistência porosa, que permite a penetração do ar, da chuva, da maresia - e de mais urina. 'O desgaste alcança até mesmo os vergalhões de aço, que também não resistem a tanto xixi. Com o tempo, o metal se dilata e se fragiliza. "Há casos em que o vergalhão ficou dez vezes mais inchado do que quando era novo", diz Jorge Fortes, professor de engenharia da Universidade Católica de Salvador. Em casos menos graves, é possível reparar as áreas danificadas. A obra começa com a retirada do cimento apodrecido e a limpeza dos vergalhões. Depois, toda a área é reforçada com uma nova camada de concreto. A parte afetada é revestida com uma camada de epóxi, que impermeabiliza o local pelo prazo de dez anos.
Salvador é a principal vítima da falta de educação e civilidade dos brasileiros, mas não é a única. Em Porto Alegre, o Ministério Público exigiu que a prefeitura restaurasse o Monumento aos Açorianos, uma escultura de aço de 17 metros de altura e 24 metros de comprimento que ameaçava desabar por causa da quantidade de urina despejada nela. No Rio de Janeiro, o xixi esburacou os Arcos da Lapa, cujo conserto custará 1,2 milhão de reais, e os pilares de um elevado no bairro de São Cristóvão. Neste ano, as autoridades cariocas iniciaram uma cruzada contra os porcalhões. Só no Carnaval e nos dias de jogos do Brasil na Copa do Mundo, prenderam 464 pessoas que tiraram água do joelho no meio da rua. Os flagrados responderão por prática de ato obsceno, crime punível com multa e até um ano de cadeia. A prefeitura de Salvador pretende seguir o exemplo do Rio para combater o que é, essencialmente, um sinal de atraso sociocultural. Na Europa, urinar em público passou a ser considerado um hábito condenável a partir do século XVII, quando as cidades foram submetidas a processos de higienização e as ruas começaram a ser vistas como espaço público. No Brasil, ainda grassa a percepção de que as áreas coletivas são terra de ninguém. "Urinar em público não é só falta de educação e de higiene. É uma forma de agressão, porque a nudez pode humilhar e constranger os outros", diz Álamo Pimentel, professor de antropologia da educação da Universidade Federal da Bahia.

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