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Rafael Garcia e Renato Grandelle
País sustenta taxa de aumento de casos por dia de cerca de 30%, índice que levou nação europeia ao colapso no segundo mês com Covid-19
Enfermeira atende paciente no Hospital Municipal Luiz Gonzaga, em Miguel Pereira (RJ), onde foi registrada a morte de uma paciente por coronavírus Foto: Fabiano Rocha/20-3-2020
RIO — O receio de que o Brasil possa trilhar o mesmo caminho da Itália com a Covid-19, com uma explosão da epidemia nas primeiras semanas, já não é mais algo que precise ser baseado em projeções. Após um mês de epidemia, a taxa de aumento diário no número de casos brasileiros está efetivamente em torno dos 30% — nível preocupante, e similar ao que o país europeu viu nas primeiras semanas.
Avaliar a tendência de um país nos primeiros meses de epidemia é tarefa complexa, porque quando o número de casos é baixo, qualquer notificação causa variações percentuais bruscas. Uma vez que os dois países passaram do limiar dos cem casos, porém, a inclinação da curva de crescimento epidêmico se alinhou em torno da taxa dos 30%.
Taxa de aumento diário dos casos brasileiros é similar a que a Itália registrou nas primeiras semanas da epidemia Foto: JHU/CSSE; Editoria de Arte
A Itália foi justamente o exemplo usado pelo presidente Jair Bolsonaro para rechaçar o risco de que a epidemia do novo coronavírus teria o mesmo destino no Brasil.
— Espalharam exatamente a sensação de pavor, tendo como carro-chefe o anúncio do grande número de vítimas na Itália: um país com grande número de idosos e com um clima totalmente diferente do nosso. O cenário perfeito, potencializado pela mídia, para que uma verdadeira histeria se espalhasse pelo nosso país — afirmou o presidente, na última terça-feira.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também rejeitou a comparação entre os dois países, sublinhando as diferenças na pirâmide etária. Os dados apontam que o grupo de risco da nação europeia é maior do que o brasileiro.
— É difícil comparar Brasil com Itália. É comparar lé com cré. Nossos números de idosos é de 14%. O da Itália, quase 30%. Idoso eu estou falando de 60 anos pra cima — explicou. — Aí depois, na segunda faixa etária (adultos), a Itália vai lá pra cima, e o Brasil tem muito jovem, então nós temos uma vantagem.
Na última sexta-feira, a Itália ultrapassou a China como o segundo país com mais casos confirmados, ficando atrás apenas dos EUA. No dia seguinte, a nação europeia ultrapassou a marca de 10 mil mortos.
Ao final do 30º dia a partir da detecção do primeiro caso, porém, o Brasil registrou mais casos (2.985) do que a Itália tinha (1.128) em seu 30º dia.
É preciso relativizar os valores absolutos, no entanto. É posssível que os italianos tenham detectado seu primeiro caso importado num momento mais precoce do que os brasileiros, apesar de o país europeu ter demorado a perceber que a epidemia estava em franca transmissão comunitária nas províncias do norte. Ao fim do primeiro mês, porém, a tendência de crescimento da epidemia nas duas nações tinha semelhanças marcantes.
Um dos fatores de dificuldade ao combate à doença no Brasil pode vir a ser o seu espalhamento geográfico. Os boletins epidemiológicos divulgados pelo Ministério da Saúde ainda não informam a quantidade de municípios que já registraram casos de Covid. Uma contagem independente feita pelo projeto de transparência de dados Brasil.io, capitaneado pelo programador Álvaro Justen, encontrou, porém, informes relatando casos da doença em 269 municípios, em todos os estados.
Transmissão galopante
Coordenador técnico da Sociedade Brasileira de Infectologia, Hélio Bacha acredita que a sugestão do presidente Bolsonaro em acabar com a quarentena, ou mantê-la apenas entre idosos, pode fazer com que o Brasil, nas próximas duas semanas, apresente uma taxa de aumento diário de casos muito maior do que a vista na própria Itália.
— O Brasil tem um processo de epidemia ativa, uma transmissão galopante. Ainda não obtivemos um índice ideal de adesão ao isolamento, que é uma medida fundamental para contenção dos casos — explica.
Bacha considera que, dada a concentração populacional, a região Sudeste será a mais vitimada pela Covid-19. O infectologista avalia que os hospitais privados, embora lotados, conseguiram se preparar para atender os pacientes. Ainda assim, em breve poderão sofrer dificuldades, pois uma pessoa em estado grave recuperada precisa ficar ao menos um mês no respirador antes da conclusão do tratamento. Haverá, então, pouca rotatividade no fornecimento de leitos.
Mudando a curva
Para o epidemiologista Eliseu Alves Waldman, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, o Brasil só conseguirá "achatar" a curva de crescimento dos casos se conseguir retardar, ao máximo, o aparecimento de novos casos.
— Esta estratégia não estinguirá o vírus, mas fará com que ele circule de forma mais lenta, até que a maioria da população desenvolva uma imunidade contra ele. É uma questão de tempo: pessoas assintomáticas conseguem produzir anticorpos. Se isso ocorrer com 70% dos brasileiros, poderemos dizer que a epidemia foi extinta — explica.
Waldman ressalta que, embora a taxa de idosos do país seja menor do que a italiana, o Brasil lidará com um desafio igualmente significativo — a miséria.
O epidemiologista destaca que a cidade do Rio de Janeiro tem pelo menos 2 milhões de pessoas vivendo em situação de vulnerabilidade. Em São Paulo, 1 milhão. E as duas metrópoles concentram a maioria dos óbitos decorrentes da epidemia até agora. A Baixada Fluminense e as cidades-satélite do Distrito Federal também são uma fonte de preocupação.
— Precisamos de uma política de mitigação para estas regiões, onde o vírus terá mais facilidade para se disseminar — alerta.— Devemos preparar mais leitos, inclusive da UTI, investir em hospitais que atendam especificamente pacientes de coronavírus e conseguir testes de diagnóstico, o que é o maior gargalo do país até agora.
Professor titular de Epidemiologia da UFRJ, Roberto Medronho concorda que reduzir ou achatar a curva de crescimento de casos exige políticas de incentivo ao isolamento social.
— Se mantivermos uma curva exponencial do crescimento de casos, logo teremos uma crise humanitária — ressalta. — Sabemos que as políticas de isolamento social impactarão severamente a economia, mas este é o momento de salvar vidas. Dependendo das medidas que tomarmos agora, os médicos não precisarão fazer uma "escolha de Sofia", como foi a vista na Itália, onde se selecionava que pacientes receberiam respiradores, tendo mais chances de reagir a um tratamento, enquanto outros eram deixados para morrer.
Segundo Medronho, no início da epidemia, o Brasil tomou medidas satisfatórias - havia testes suficientes, aplicou quarentena aos infectados e monitorou as pessoas com quem eles tiveram contato.
— Mas, quando vi que havia a possibilidade de contaminação assintomática, eu pensei: já era. É muito mais fácil tratar uma enfermidade que leve todos os doentes ao hospital do que uma em que um indivíduo assintomático circula por aí, transmitindo o vírus para as pessoas com quem têm contato — compara. — Não temos tecnologia para detectar esses casos, a não ser se realizarmos testes em toda a população.
A aplicação de exames em massa foi realizada na Coreia do Sul, uma das poucas nações a registrar um início explosivo de ocorrências, mas que logo conseguiu conter esta curva de crescimento. No auge da epidemia, entre o final de fevereiro e o início de março, o país chegou a registrar mais de 850 novas infecções por dia. Na última semana, porém, raramente foram registradas mais de cem novas ocorrências diárias.
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