O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em recente
decisão na qual rejeitou pedido dos advogados do empresário de jogos ilegais,
Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, que tentavam impedir seu depoimento
à CPMI que investiga suas atividades, entre outras coisas, lembrou que o
investigado tem três deveres: comparecer à comissão quando convocado, responder
às indagações e dizer a verdade.
Em contrapartida, tem um direito inalienável: o de permanecer em silêncio,
“como expressão da prerrogativa constitucional contra a autoincriminação”. Dias
depois, o ministro Dias Toffoli concedeu Habeas Corpus para Gleyb Ferreira da
Cruz, apontado como “laranja” de empreendimentos de Cachoeira, que lhe garantiu
o direito de ser assistido por seus advogados, de se comunicar com eles durante
a inquirição e de permanecer em silêncio sem ser submetido a qualquer medida
privativa de liberdade ou restritiva de direitos por conta do exercício dessas
prerrogativas constitucionais.
O próprio ato de investigados recorrerem ao STF para ter garantido um direito
fundamental pode parecer perda de tempo. Mas fatos recentes mostram que não é
bem assim. A discussão em torno do direito de um investigado permanecer calado
como expressão da garantia de não produzir prova contra si mesmo voltou à tona
graças ao bate boca entre o deputado federal Silvio Costa (PTB-PE) e o senador
Pedro Taques (PDT-MT) durante o depoimento do senador Demóstenes Torres (sem
partido-GO) à CPMI, na semana passada — clique aqui para ver o vídeo no
Youtube.
Silvio Costa entende que o silêncio significa culpa — talvez pela falta de
formação jurídica. Técnico agrícola e empresário da educação, conforme consta de
sua biografia no site da Câmara dos Deputados, Costa atacou Demóstenes, que
avisou que iria usar seu direito constitucional de permanecer em silêncio. “O
seu silêncio é a mais perfeita tradução da sua culpa. Esse seu silêncio, ele
escreve em letras garrafais: ‘Eu, Demóstenes Torres, sou, sim, membro da
quadrilha do senhor Cachoeira. Eu, senador Demóstenes Torres, sou, sim, o braço
legislativo da quadrilha do senhor Cachoeira’.”
O senador Pedro Taques, ex-procurador da República e professor de Direito
Constitucional, se viu obrigado a intervir para colocar ordem na desinformação:
“Nós todos aqui, como parlamentares, devemos obedecer a Constituição da
República. Um senador da República não pode tratar um parlamentar, não pode
tratar quem quer que seja, com indignidade. Não me interessa quem seja o
investigado. Pessoas morreram no mundo em razão do direito constitucional ao
silêncio”.
Não custa registrar que Taques é um dos integrantes mais ativos da CPMI do
Cachoeira. Fato que demonstra que é possível investigar sem atropelar garantias
fundamentais de qualquer dos investigados, como se faz na maior parte dos países
civilizados do mundo. Não fossem parlamentares como Silvio Costa, os depoentes
investigados sequer necessitariam recorrer ao Supremo em busca de Habeas Corpus
preventivos, já que estudantes de Direito aprendem, desde o primeiro ano dos
bancos acadêmicos, a importância do direito de permanecer calado.
Além do mais, como lembra o procurador de Justiça no Rio Grande do Sul e
constitucionalista Lênio Streck, o deputado que escracha um acusado por este
estar ao abrigo de uma garantia fundamental comete falta funcional. “Ou seja,
também ele poderia ser processado por falta de decoro. Quer maior falta de
decoro do que fazer escárnio com um direito fundamental? Além de tudo, é um
péssimo exemplo. Um legislador deve ser o guardião das garantias e não o seu
algoz!”, defende Streck.
Garantia universal
O direito de permanecer em silêncio,
de o réu não se autoincriminar durante as fases de um processo penal —
investigação e julgamento — sem que isso sirva de indício contra ele próprio é
consagrado como direito fundamental em incontáveis sistemas jurídicos de todo o
mundo.
Nos Estados Unidos, onde o enunciado “você tem o direito de permanecer
calado” migrou para a cultura popular, a garantia constitucional é petrificada
na exigência de que o cidadão seja correta e inequivocamente informado do seu
direito de não se pronunciar, de se recusar a colaborar com as autoridades. Ou
seja, naquele país, tornou-se imprescindível à efetivação da garantia
constitucional que o cidadão detido em custódia e o réu sejam informados
previamente de que “calar não implica em consentir” e nem em assumir a
responsabilidade de uma acusação que lhe seja imputada.
A Suprema Corte americana decidiu, na década de 1960, que os direitos
assegurados pela quinta e sexta emendas de sua Constituição só encontram plena
vigência se o cidadão souber que dispõe deles. São as chamadas Advertências
Miranda, estabelecidas em 1966 pela Suprema Corte depois que um réu acusado de
sequestro e estupro, Ernesto Miranda, teve a prisão revogada porque suas
garantias asseguradas pela Constituição foram ignoradas. Somente mais tarde,
após reformulação do inquérito e da ação judicial, ele voltou para trás das
grades.
Tratava-se, desde o início, de um réu confesso. Porém, nem mesmo por ter
assumido o crime, seus direitos constitucionais poderiam ser negligenciados, de
acordo com o entendimento dos juízes do alto tribunal à época. As Advertências
Miranda também devem comunicar ao suspeito de que ele tem direito a dispor dos
serviços de um advogado.
O direito de não se pronunciar tornou-se tão paradigmático que, além de ser
matéria de Direito Penal, foi amplamente irradiado para o campo dos Direitos
Humanos. O advogado colombiano Juan David Riveros-Barragán, professor da
Universidad del Rosario de Bogotá, e da Faculdade de Ciências Jurídicas da
Pontifícia Universidade Javeriana, em Cali, lembrou, em um estudo comparado
sobre o assunto, que a garantia está universalizada em um sem número de
documentos e estatutos internacionais. É o caso dos estatutos da Corte Penal
Internacional, do Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, do Tribunal
Penal para Ruanda, da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto
Internacional dos Direitos Civis.
Avalia-se que, nos EUA, um milhão de ações penais sejam anualmente canceladas
porque os réus não foram previamente informados do seu direito de não se
pronunciar quando inquiridos por autoridades. A questão do direito ao silêncio é
tão ampla no país que a preocupação com a incapacidade dos cidadãos de
compreendê-lo assumiu uma posição central no Direito penal americano na última
década.
Ciência do silêncio
Em razão da ausência de parâmetros
para a leitura dos direitos e por conta de um amplo histórico de abuso policial,
o problema tornou-se tão complexo que acabou repercutindo no desenvolvimento de
um subcampo da ciência forense no país. A revista
Consultor
Jurídico entrevistou, em 2010, o maior especialista sobre o assunto nos
EUA, o psicólogo forense Richard Rogers — clique
aqui
para ler a entrevista.
Seus estudos avaliam o impacto para o sistema judicial americano da
incompreensão, por parte dos réus, do direito de não se autoincriminar. Com
recursos financiados pela renomada National Science Foundation, os estudos do
professor Rogers já foram citados, em sessão de argumentação oral, pelos juízes
da Suprema Corte (no caso Flórida contra Powell, de 2010), influenciaram também
a formulação de políticas promovidas pela American Bar Association (a Ordem dos
Advogados dos EUA) e são comumente mencionados em tribunais de apelação (segunda
instância) em todo o país.
Em 2011, numa decisão
polêmica, a Suprema Corte acabou estendendo a interrogatórios realizados com
não-suspeitos a prerrogativa de se informar sobre o direito de se permanecer em
silêncio. No caso J.D.B versus o Estado da Carolina do Norte, juízes da
Suprema Corte decidiram que o depoimento colhido por policiais de uma criança
que conhecia dois suspeitos, realizado em uma escola e com anuência do diretor e
professores da instituição, deveria ser retirado dos autos de um processo que
condenou dois réus por arrombamentos de casas. Isso porque os dois agentes que
conduziram o interrogatório na sala de reunião do colégio não informaram
previamente ao estudante de 13 anos que ele não era obrigado a falar.
Na França, até mesmo um famigerado e controverso símbolo da cultura policial
será reformulado em favor da reafirmação da garantia constitucional de não se
produzir provas contra si mesmo. O tradicional garde à vue, expediente
legal que estabelece que o suspeito tem o direito de consultar seu advogado logo
nos primeiros 30 minutos de detenção pela Polícia, mas que, depois, pode ser
submetido a interrogatórios, num período entre 48 e 96 horas, sem a presença do
mesmo, será mudado para abranger a comunicação, ao investigado, de que ele não é
obrigado a falar.
O Parlamento francês aprovou uma lei que passa a vigorar neste mês obrigando
os investigadores a informarem os réus de que estes podem usufruir o direito de
não se pronunciar sem que isso incorra em indícios de culpabilidade. Em abril,
um tribunal francês decidiu que a mudança, na verdade, devia entrar em vigor
imediatamente naquele momento.
Fábrica de pizza
A estratégia de atacar os investigados
pode ser boa para somar votos, mas costuma ser contraproducente para o objetivo
de uma CPI, qualquer uma: além de municiar o Ministério Público com eventuais
descobertas, aperfeiçoar o ordenamento jurídico para evitar que os fatos que
deram à luz a comissão se repitam.
Um bom exemplo de contribuição legislativa resultante de uma CPI é a do
projeto que que aumenta o prazo de prescrição de crimes sexuais praticados
contra crianças e adolescentes. De acordo com o texto, a prescrição do crime
começa a contar somente depois que a vítima completar 18 anos de idade. A
prescrição segue a contagem normal nos casos em que já haja ação penal contra o
acusado do crime. O projeto aprovado modifica o artigo 111 do Código Penal, que
regula as hipóteses de prescrição criminal, e contou com o apoio do Ministério
da Justiça. A proposta surgiu das inbestigações e debates ocorridos na CPI da
Pedofilia.
Uma CPI tem os mesmos poderes de investigação de autoridades policiais e da
Justiça. Pode convocar investigados para depor, pode quebrar sigilos de pessoas
físicas e jurídicas e fazer interrogatórios com amplo acesso ao material colhido
por outras autoridades, como Polícia, Ministério Público e órgãos
administrativos, como Receita Federal e Coaf, por exemplo.
Por isso mesmo tem de proceder dentro dos mesmos limites dos demais órgãos de
investigação. Só pode quebrar sigilos com fundamentação razoável e tem de
permitir que o investigado use suas garantias constitucionais quando achar que
deva, sob pena de ver anulado depois, pelo Judiciário, boa parte de seu
trabalho.
Mas a impressão de que tudo acaba em pizza nas CPIs vem de outra
peculiaridade desse instrumento de investigação parlamentar: é que as comissões
parlmentares de inquérito não têm poder de condenar criminalmente. Por mais
crimes que tenha cometido o investigado, não são os deputados que vão mandá-lo
para a cadeia. O máximo que uma CPI pode fazer é encaminhar para a Polícia ou
para o Minstério Público o relatório final com suas conclusões. Caberá à polícia
e ao MP instruir o processo que será levado à justiça e aí sim, haverá um juiz
para julgar e, se for o caso, condenar.
Mais produtivo seria se deputados e senadores, no lugar de discursos tão
contundentes quanto rasos — como dizer, por exemplo, que Demóstenes Torres
deveria ser processado pelo Conar por propaganda enganosa —, fizessem a análise
de provas e questionassem os depoentes sobre os crimes que ali encontram
indícios. E perguntassem se ele quer se defender das acusações. Não usar a
Comissão como palanque para atacar quem quer que seja.
Tiro no pé
De outro lado, a história mostra que a
investigação parlamentar pode render melhores resultados quando o depoente se
sente encorajado a “abrir seu coração”. Sem ser atacado e humilhado por
deputados e senadores blindados com a imunidade parlamentar, o marqueteiro Duda
Mendonça, em agosto de 2005, confessou a prática de ao menos dois crimes: evasão
de divisas e sonegação fiscal. Não foi preso ou humilhado e, agora, terá de
acertar as contas com a Receita Federal. Bom para o erário e melhor para as
investigações.
De cara limpa, Duda deu mais pistas aos parlamentares sobre os fatos
investigados do que todos os depoentes que o precederam munidos de Habeas Corpus
preventivos contra uma eventual prisão em flagrante por falso testemunho. Também
foi tratado com muito mais cordialidade por seus inquiridores.
O respeito às garantias de investigados em CPIs foi construído por muitos
embates. Um dos primeiros advogados a pedir ao Supremo um Habeas Corpus
preventivo para seu cliente depor no Congresso foi o mineiro Marcelo
Leonardo, que representa o publicitário Marcos Valério. Em julho de 2005,
durante à CPI dos Correios, que investigava, na verdade, o mensalão, Leonardo
entrou com pedido de Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal para garantir que
Valério pudesse se calar para não se auto-incriminar durante o interrogatório no
Congresso Nacional.
A iniciativa de Marcelo Leonardo foi seguida por todos os advogados cujos
clientes tivessem o silêncio como melhor opção nos interrogatórios. Nem
Leonardo, nem nenhum de seus colegas inventaram qualquer novidade. Como bons
conhecedores da lei, simplesmente lançaram mão de um dispositivo da Constituição
que garante a todo cidadão o direito de não se auto-incriminar. Diz a
Constituição em seu artigo 5º, inciso LXIII: "O preso será informado de seus
direitos, entre os quais o de permancer calado, sendo-lhe assegurada a
assistência da família e do advogado".
O mesmo artigo 5º da Constituição, que enfeixa os direitos e garantias
fundamentais do cidadão, no inciso LV, garante ao preso o direito — não o dever,
mas o direito — de falar para se defener: "aos aucsados em geral são assegurados
o contraditório e a ampla defesa". Ou seja, a mesma Constituição que garante o
direito de ficar calado para não se incriminar, garante também o direito de
falar para se defender. Calar e falar são, portanto, direitos do investigado.
Obrigação, mesmo, têm os investigadores de produzir provas. A prática
inquisitorial de arrancar confissões da idade média já não cabe no ordenamento
jurídico de países civilizados contemporâneos.
O presidente da CPI à época, senador Delcídio Amaral (PT-MS), solicitou ao
Supremo que não mais concedesse os Habeas Corpus aos depoentes da CPI para não
atrapalhar o bom andamento das investigações. Os Habeas Corpus continuaram sendo
concedidos, mesmo quando para boa parte das pessoas parecesse um absurdo
garantir aos interrogados o suposto “direito de mentir” na CPI. Na verdade,
tratava-se apenas de garantir um direito constitucional.
Luiz Guilherme Vieira, advogado do ex-presidente do Banco Central Francisco
Lopes, durante audiência da CPI do Sistema Financeiro, em 26 de abril de 1999,
foi quem inaugurou o papel fundamental do advogado na CPI aconselhando seu
cliente a ficar calado, já que estava ali como investigado e não como
testemunha. Por seu comportamento, Vieira foi agredido e acabou expulso do
recinto, provocando o protesto da OAB. Mas fez escola.
Na ocasião, ainda não havia um Pedro Taques no Parlamento para lembrar aos
colegas parlamentares que investigados têm de ser tratados com decência, não
importa a gravidade do crime pelo qual estejam sendo investigados. Políticos
estão acostumados com palanques, frases contundentes e o aplauso fácil de
correligionários e eleitores. Tudo como parte do jogo democrático. Mas para o
aperfeiçoamento das instituições do país, é de bom tom que saibam diferenciar a
hora de fazer campanha daquela de trabalhar para valer e ajudar a depurar os
maus costumes.