Da CONJUR
Duas decisões tomadas em um espaço de um ano e meio sobre a mesma lei
revelaram que o Supremo Tribunal Federal não está disposto a permitir que o
Congresso Nacional atropele a Constituição com a justificativa de combater a
criminalidade. A mensagem é clara: o rigor da lei tem de obedecer aos parâmetros
mínimos das garantias constitucionais, ou as normas cairão por terra.
Na última quinta-feira (10/5), os ministros derrubaram, por maioria, a regra
da chamada Nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) que impedia juízes de conceder
liberdade provisória a presos em flagrante por tráfico de drogas. Em setembro de
2010, outra regra contida no mesmo artigo 44 da lei, que impedia a conversão de
pena de prisão em restritiva de direitos, havia sido julgada
inconstitucional.
No julgamento da última quinta, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo,
chegou a dizer que a proibição de que o juiz analise a possibilidade de o
acusado por tráfico responder ao processo em liberdade “transgride o princípio
da separação de Poderes”. Trocando em miúdos, o Parlamento não pode, por meio de
lei, impedir que magistrados exerçam prerrogativas inerentes à sua função, como
é o caso de avaliar se um acusado pode responder ao processo em liberdade e
determinar qual é a punição mais adequada para o crime cometido por um
condenado.
No caso mais recente, por sete votos a três, os ministros julgaram
inconstitucional a expressão “e liberdade provisória” contida no artigo 44 da
Lei 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas (Sisnad). De acordo com a regra, os crimes relacionados ao tráfico de
drogas “são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto,
anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas
de direitos”.
Apesar de a expressão se referir especificamente ao crime de tráfico de
drogas, as discussões em plenário mostraram que os ministros não admitem a
possibilidade de a lei vedar a concessão de liberdade sem que o juiz possa
examinar o caso concreto em quaisquer crimes.
A decisão foi tomada em pedido de Habeas Corpus impetrado pelos advogados
Daniel Leon Bialski e Guilherme Pereira Gonzalez Ruiz Martins. No pedido, os
advogados sustentavam que a alteração trazida pela Lei 11.464/2007, posterior à
Lei de Drogas, que permitiu a liberdade provisória para crimes hediondos ou
equiparados, certamente abrangeria o crime de tráfico, revogando tacitamente a
vedação expressa da lei anterior.
Os advogados juntaram ao pedido a exposição de motivos da Lei 11.464: “O
Projeto pretende modificar o artigo 2º da Lei 8.072, de 1990, com objetivo de
adequá-la à evolução jurisprudencial ocorrida desde sua entrada em vigor, bem
como torná-la coerente com o sistema adotado pela Parte Especial do Código Penal
e com os princípios gerais do Direito Penal. A proposta de alteração do inciso
II do artigo 2º busca estender o direito à liberdade provisória aos condenados
por esses delitos, em consonância com o entendimento que já vêm se tornando
corrente nas instâncias superiores do Poder Judiciário”.
Por essas razões, os advogados alegaram que a lei deixa claro que não se
poderia obstruir ou negar a liberdade provisória para os delitos hediondos e a
esses equiparados. Outro ponto fundamental para a defesa foi a alegação de que o
inciso LXVI do artigo 5º da Constituição vedava unicamente aos crimes de tráfico
de drogas a possibilidade de concessão da liberdade provisória mediante a
atribuição de fiança, o que importaria na conclusão de que o agente não poderia
substituir a sua liberdade por um bem de valor econômico para responder solto ao
processo.
Mas não seria vedada a concessão de liberdade provisória se estivessem
ausentes os motivos da prisão preventiva. Com base em precedentes do próprio
STF, os advogados lembraram que a prisão preventiva decorrente unicamente de
previsão legal não é autorizada pelo ordenamento jurídico brasileiro em razão da
primazia dos princípios da presunção de inocência, razoabilidade, devido
processo legal, além da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de
prisão.
Liberdade provisória
Na última quinta, o Supremo decidiu
que o legislador não pode restringir o poder do juiz de analisar a possibilidade
de conceder liberdade provisória. Os ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e
Luiz Fux ficaram vencidos. Joaquim Barbosa concedia o pedido de Habeas Corpus
para determinar a soltura do preso por considerar que a decisão de mantê-lo
preso carecia de fundamentação.
Para o ministro Marco Aurélio, "os representantes do povo brasileiro e os
representantes dos estados, deputados federais e senadores, percebendo a
realidade prática e o mal maior que é revelado pelo tráfico de entorpecentes,
editaram regras mais rigorosas no combate ao tráfico de drogas". De acordo com
ele, o legislador agiu dentro dos limites de sua competência. Mas o ministro
também concedia o Habeas Corpus 140.339 por excesso de prazo da prisão cautelar,
já que o acusado está preso há quase três anos sem condenação definitiva.
Para a maioria do tribunal, contudo, a norma é inconstitucional. Como
ressaltou o decano do STF, ministro Celso de Mello, a gravidade abstrata do
delito não basta, por si só, para justificar a prisão cautelar do suposto
criminoso. Principalmente, sem que a culpa tenha sido formada.
O relator do processo, ministro Gilmar Mendes, disse que a
inconstitucionalidade da norma reside no fato de que ela estabelece um tipo de
regime de prisão preventiva obrigatória. E a liberdade seria a exceção. Na
verdade, as garantias constitucionais preveem o contrário. Para o ministro Celso
de Mello, o juiz tem o dever de aferir se estão presentes hipóteses que
autorizam a liberdade. Lewandowski concordou com Celso e afirmou que o princípio
da presunção de inocência e a obrigatoriedade de fundamentação das ordens de
prisão pela autoridade competente impedem que a lei proíba, de saída, a análise
de liberdade provisória.
No julgamento, os ministros deixaram claro que não se trata de impedir a
decretação da prisão provisória quando necessário, mas de não barrar a
possibilidade de o juiz, que é quem está atento aos fatos específicos do
processo, analisar se ela é ou não necessária.
Pena alternativa
Em setembro de 2010, os ministros
declararam inconstitucional a regra, contida no mesmo artigo 44, que proibia
juízes de fixar penas alternativas para condenados por tráfico de drogas. Na
ocasião, o ministro Celso de Mello disse que cabe ao juiz da causa avaliar qual
é a pena mais adequada para o condenado. “Afasta-se o óbice para que o
magistrado possa decidir”, afirmou.
A maioria dos ministros entendeu que a proibição fere o princípio da
individualização da pena. Para os quatro vencidos, a Constituição permite que o
legislador estabeleça balizas dentro das quais o juiz deve atuar na hora de
decidir qual será a pena de condenados.
O relator do processo, ministro Ayres Britto, sustentou que o legislador não
pode restringir o poder de o juiz estabelecer a pena que acha mais adequada para
os casos que julga. “Ninguém mais do que o juiz da causa pode saber a melhor
pena para castigar e ressocializar o apenado”, afirmou na semana passada. De
acordo com ele, a lei não pode proibir que a Justiça procure “alternativas aos
efeitos traumáticos do cárcere”.
Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Cezar Peluso e
Celso de Mello concordaram com o relator. O ministro Gilmar Mendes apontou o que
chama de “falta de cuidado do legislador” na fixação de limites e no respeito à
reserva legal. “Não há liberdade para o legislador neste espaço que é de direito
fundamental. A Constituição consagrou que o direito à individualização da pena é
fundamental e como tal deve ser tratado”.
Gilmar Mendes ressaltou que o STF não está decidindo que haja uma liberação
geral para os condenados por tráfico, mas sim permitindo que o juiz faça a
avaliação e possa decidir com liberdade qual será a pena mais adequada. “O
tribunal está a impedir que se retire do juiz o poder dessa avaliação”,
concluiu, também na semana passada.
O ministro Joaquim Barbosa divergiu do relator e foi acompanhado pelas
ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie (aposentada) e pelo ministro Marco
Aurélio. Para Barbosa, a Constituição não outorga ao juiz esse poder amplo, de
decidir qual é a pena mais adequada em todos os casos.
Joaquim Barbosa deu exemplos nos quais o legislador restringiu o poder
decisão do juiz sobre a pena e que não são considerados inconstitucionais. “O
Código Penal traz vedações à substituição de pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos em diversos pontos. Por exemplo, quando o crime é
cometido com violência ou grave ameaça”, afirmou. O ministro lembrou que no
crime de roubo simples é vedada a pena alternativa.
O ministro Marco Aurélio lembrou que a própria Constituição dá um tratamento
diferente ao tráfico de drogas ao estabelecer que é um crime inafiançável. Para
Marco, a Constituição se auto-limita. “Não consigo harmonizar o fato de uma
pessoa ser presa em flagrante, responder ao processo presa e ter a seguir,
depois de condenada, a pena restritiva de liberdade substituída pela restritiva
de direitos”, disse.
O voto do ministro Celso de Mello no sentido de declarar a regra
inconstitucional já era esperado. Em outras ocasiões, o decano já havia
concedido liminares para permitir que pessoas presas por tráfico de drogas
respondam ao processo em liberdade, o que também é vedado pela Lei de
Drogas.
Rodrigo
Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em
Brasília.
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